Miguel Araújo
5 Músicaspobre menina, tão acidentada sina
encontrada numa esquina, numa cestinha de palha
em lourizela, nas traseiras da capela
como cria de cadela sem santinho que lhe valha
o padre alfredo velho, cobarde e azedo
não é tarde nem é cedo despachou a desditosa
“por este meio” foi na volta do correio
numa mula sem arreio enviada pra murtosa
a dona otília que ninguém nem dada queria
viu na curiosa cria cura para a solidão
deu-lhe uma sopa e de alguns restos de estopa
fez-lhe carapins e roupa e uma cama sem colchão
ao ver aquela tez de cravo e de canela
deu-lhe o nome gabriela (dava a cara com a careta)
mas sua beleza em brasa, em chama acesa
pegou fogo à redondeza como o bafo do capeta
e a inocente um pobre meio rei de gente
muito recatadamente espairecia a sua mágoa
com um rádio velho boca de batom vermelho
a cantar em frente ao espelho as canções da lena d’água
lobos malvados, velhos loucos reformados,
mexericos , maus olhados das beatas da igreja
mal via a hora de arrancar dali pra fora
sem deixar rasto, ir embora ver o mundo, ver estarreja
sem pé de meia teve uma brilhante ideia
decidiu pedir boleia e só parar em paris
sem carteira lá foi sem eira nem beira
e nem sequer viu a fronteira não chegou nem a sanfins
e em valpaços com alma em mil pedaços
entreteve-se nos braços de um magala de alcafache
pediu boleia a um pelintra de gouveia
que a mandou sair em seia e nunca mais olhou para trás
sem armar giga cantou-lhe uma cantiga
deixou-a de barriga e arrancou sem dar sinal
sem dois tostões deu por ela aos trambolhões
junto ao porto de leixões com uma filha e um ucal
sacou dinheiro a um velho engenheiro
e escondeu-se num cargueiro que rumava à capital
chegou-se à proa e quase achou que a vida é boa
ao ver as luzes de lisboa lindas como num postal
entre destratos, desaforos, desacatos
varreu escadas, lavou pratos numa tasca do cacém
entregou-se a um tratante de pedrouços
saído dos calabouços que a deixou sem um vintém
no intendente tropeçou numa vidente
que jurou que mais à frente a sorte havia de sorrir
a cartomante uma velha de turbante
intuiu pelo semblante um futuro a reluzir
na luz da vela viu a luz de gabriela
com direito até a estrela no passeio de hollywood
em poucos dias por misteriosas vias
cumpriam-se as profecias mais certeiras que o talmude
nessa semana foi pra america, fez fama
privou com a primeira dama levou a filha ao hawai
e em gouveia passa um louco, volta e meia
que blasfema e cambaleia e garante que é o pai
e na murtosa o padre faz menção honrosa
festa, missa, pompa e prosa que hoje é feriado local
em lourizela há uma estátua em honra dela
“aqui nasceu gabriela o grande orgulho nacional”
em lourizela,bem de frente pra capela
para sempre gabriela como quem diz ah pois é
(e o engenheiro confere o bolso traseiro
vê que lhe falta dinheiro e volta para leça a pé)