Miguel Araújo
5 MúsicasPousou a chave na salva de prata
Na mesa da sala, o saco das compras
a carteira na cadeira da entrada
E a carta do banco no monte das contasEu tirei à pressa os pés do sofá
E uns restos de repa da testa com a mão
Aqueci a água do chá
E ela fez uma festa na testa do cãoE eu saltitando como um Fred astaire
Disse “queres que trate dos banhos
Ou mande este aqui fazer os deveres
Enquanto que o outro acaba o desenho”E ela
Ali como se nada fosse
Como se nem fosse milagre
Um dia normal
E euQuieto para não dar bandeira
Alinho nessa corriqueira
Dança de um dia normal
Como se não fosse nada de maisQue ao fim destes anos
Já sem estar nos meus planos
Ela voltasse sempre para mim
Eu faço tal e qual
A dança de um dia normalEnquanto que a água da massa escorria
Ela pergunta, num tom casual
Então que tal correu o teu dia
Eu disse foi um dia normalNão sei se foi a saudade que a trouxe
Ou se houve algum santo a atender minhas preces
Mas fiz como ela, como se nada fosse
Não fosse ela às vezes pensar duas vezesTenho um periquito dentro da gaiola
Que canta sempre que lhe dou uma Coca-Cola
Assobia os êxitos da rádio
Em dias de chuva canta um fadoLeio uma revista na diagonal
E consigo ver pra lá do meu quintal
Tenho um visão grande-angular
Que abarca tudo quanto cabe no olharQuando eu morrer talvez me esfume
Em vapor de céu azul
Talvez me purifiquem nalgum lume
Ou numa túnica de tule
Mas por enquanto eu nem me tenho dado assim mal
pela Europa do sulViva o fado, viva o fado
Viva a vizinha do lado
Viva o fandango, viva o fandango
Viva o vira, vira o frango
Viva o entrudo, viva o entrudo
O gigantone e o cabeçudo
que eu estou por tudoTenho uma amiga que se derrete
Sempre que me encontra na internet
Acho que me saiu a taluda
Às custas de um poema de nerudaCedo fui sugado pelo vortex
Das normas de algum algoritmo simplex
Embati de frente na tragédia
De ser meio classe média-médiapobre menina, tão acidentada sina
encontrada numa esquina, numa cestinha de palha
em lourizela, nas traseiras da capela
como cria de cadela sem santinho que lhe valhao padre alfredo velho, cobarde e azedo
não é tarde nem é cedo despachou a desditosa
“por este meio” foi na volta do correio
numa mula sem arreio enviada pra murtosaa dona otília que ninguém nem dada queria
viu na curiosa cria cura para a solidão
deu-lhe uma sopa e de alguns restos de estopa
fez-lhe carapins e roupa e uma cama sem colchãoao ver aquela tez de cravo e de canela
deu-lhe o nome gabriela (dava a cara com a careta)
mas sua beleza em brasa, em chama acesa
pegou fogo à redondeza como o bafo do capetae a inocente um pobre meio rei de gente
muito recatadamente espairecia a sua mágoa
com um rádio velho boca de batom vermelho
a cantar em frente ao espelho as canções da lena d’águalobos malvados, velhos loucos reformados,
mexericos , maus olhados das beatas da igreja
mal via a hora de arrancar dali pra fora
sem deixar rasto, ir embora ver o mundo, ver estarrejasem pé de meia teve uma brilhante ideia
decidiu pedir boleia e só parar em paris
sem carteira lá foi sem eira nem beira
e nem sequer viu a fronteira não chegou nem a sanfinse em valpaços com alma em mil pedaços
entreteve-se nos braços de um magala de alcafache
pediu boleia a um pelintra de gouveia
que a mandou sair em seia e nunca mais olhou para trássem armar giga cantou-lhe uma cantiga
deixou-a de barriga e arrancou sem dar sinal
sem dois tostões deu por ela aos trambolhões
junto ao porto de leixões com uma filha e um ucalsacou dinheiro a um velho engenheiro
e escondeu-se num cargueiro que rumava à capital
chegou-se à proa e quase achou que a vida é boa
ao ver as luzes de lisboa lindas como num postalentre destratos, desaforos, desacatos
varreu escadas, lavou pratos numa tasca do cacém
entregou-se a um tratante de pedrouços
saído dos calabouços que a deixou sem um vintémno intendente tropeçou numa vidente
que jurou que mais à frente a sorte havia de sorrir
a cartomante uma velha de turbante
intuiu pelo semblante um futuro a reluzirna luz da vela viu a luz de gabriela
com direito até a estrela no passeio de hollywood
em poucos dias por misteriosas vias
cumpriam-se as profecias mais certeiras que o talmudenessa semana foi pra america, fez fama
privou com a primeira dama levou a filha ao hawai
e em gouveia passa um louco, volta e meia
que blasfema e cambaleia e garante que é o paie na murtosa o padre faz menção honrosa
festa, missa, pompa e prosa que hoje é feriado local
em lourizela há uma estátua em honra dela
“aqui nasceu gabriela o grande orgulho nacional”em lourizela,bem de frente pra capela
para sempre gabriela como quem diz ah pois é
(e o engenheiro confere o bolso traseiro
vê que lhe falta dinheiro e volta para leça a pé)Eu tenho uma noção de mim
Perfeita noção de mim
Tenho-me sempre à espreita
Sob escuta atenta
É uma luta, eu sei
Tenho bem noção de mimTenho essa noção de mim
Estreita noção de mim
Debaixo de olho
Alerta, atento
Bem ciente do espelho, eu sei
Tenho essa noção de mimTalvez se alguém me jurasse
Que talvez ninguém soubesse
Talvez até te convencesseTalvez se eu dançasse
Como se ninguém me visse
Como se ninguém medisse os meus passosTalvez se eu cantasse
Como se ninguém me ouvisse
Como se ninguém contasse os compassosEu tenho uma visão de mim
Sempre em supervisão de mim
Autoconsciência armou o alarme
E dar-me, eu já nem sei
Eu tenho essa visão de mimEu tenho uma visão de mim
Uma mais alta versão de mim
Em que eu sou leve
E o que me leva é a vida inteira
Inteiro até
Uma mais alta versão de mim87
Dentes de leite
E uma chiclete
Dentro dum sorvete
Doce deleite, doce deleite sob o sol
87, o troco vai em chiclas de mentolA volta ao mundo
De biciclete
E uma cassete
Que se repete
48k, k7, panike e um sumol
Depois das sete, depois das sete
Vê-se o futebolE o chicote na porta da dispensa, Sangemil?
Na vassoura a trote
Como o bud spencer e o terence hillBrasília, Bazar paris
Parque itália, salão londres
E dallas logo aliO mundo é por aqui, eu vi
É passe do Juary
Quase que podia jurar
Que foi golo de calcanhar
O mundo é por aquiCom o sol a pique,
O sorvete derrete,
Bem como o pico do Evereste
Diz o Antímio que é típico do tempo que mudouSerá da Coca-Cola?
Sai da carapaça, caracolE o chicote na porta da dispensa, Sangemil?
A lei do mais forte
Como o bud spencer e o terence hillBrasília, Bazar paris
Parque itália, salão londres
E dallas logo aliO mundo é por aqui, eu vi
É passe do Juary
Quase que podia jurar
Que foi golo de calcanhar
e o mundo é por aqui